sábado, 27 de março de 2010

Mestre "Giallo"


Dario Argento: "Arte e reflexão de arte, cinema e reflexão de cinema" – O primeiro plano de O Pássaro das Plumas de Cristal pode facilmente, como aliás também podem várias outras de filmes posteriores, ser considerada a carta de princípios do cinema de Dario Argento: um indivíduo usando um chapéu largo e uma capa de couro escura escreve à máquina. Terminado o trabalho, a estranha figura puxa uma folha com um nome feminino e um endereço. Trata-se do assassino que assolará Roma nos próximos noventa e cinco minutos do filme, e o que acabou de escrever diz respeito a sua próxima vítima. Se existe uma tentativa de aproximação entre os preparos do psicopata para o assassínio da vítima (o recolhimento de certos dados, a observação de algumas ações da moça) e o ato da realização cinematográfica (numa primeira ocasião a escrita do roteiro; num segundo o início de uma decupagem, a preparação para as "filmagens") não seria de modo algum equivocado suspeitar que esta analogia interessa e muito a Argento: ela retornará a vários de seus filmes (A Mansão do Inferno, Tenebre, Terror na Ópera, Síndrome Mortal, Insônia) e se configurará num eixo temático/narrativo fundamental de sua obra. Um cinema constituído por fluxos – No entanto são todas as cenas seguintes que revelam ao espectador aquilo que mais importa a Argento: é a feroz perseguição noturna numa garagem de ônibus pontuada pelos cuidados do diretor no corte/costura formal (montagem brilhante, fotografia idem) e pela trilha jazz de Ennio Morricone; é a distância que separa a primeira vítima da câmera de Vittorio Storaro, uma distância invadida por carros, prédios, calçadas e ruas de uma Roma capturada com o nervosismo e zelo de quem está dirigindo o primeiro filme; são as portas de vidro na galeria de arte que prendem o escritor Sam Dalmas ao tentar socorrer a marchand Monica Ranieri, recém violentada e esfaqueada pelo maníaco de chapéu largo e capa de couro escura; é o incrível zoom - dos mais belos que este limitado recurso já ofereceu - que ilustra a alienação do protagonista ante a vastidão de uma grande cidade enquanto procura sua namorada, desaparecida. Tendo como princípio um cinema de imagens fortes e marcantes, são justamente os espaços, as estruturas que os compõem e o fluxo de objetos por entre estes que Argento busca privilegiar, que formam o centro nervoso de uma idéia que percorre toda sua obra: de que algo - atalhos, ligações, desdobramentos e deformações - existe e circula por entre estas imagens. É esta a acepção que em grande parte vem singularizando o percurso deste autor que há mais de 30 anos traça uma obra significativa ao estabelecer um diálogo entre a iconografia do suspense whodunit e uma duradoura tradição da arte italiana, a ópera, com a forte presença dos cinemas novos, de um cinema moderno que teve notável expressão durante boa parte dos anos 60 e 70. Imagem, um ponto final; na montagem, o questionamento – Em Prelúdio Para Matar, logo após testemunhar o assassinato da parapsicóloga Helga Ulman, o pianista inglês Marcus Daly se dirige ao apartamento no qual o crime ocorreu. Passando rapidamente pelo corredor que leva ao quarto onde a vítima se encontra, Marcus nota a presença de vários quadros, retratos que possuem apenas uma característica em comum: um mesmo grupo de faces indistintas, disformes, que passam a impressão de buscarem uma forma, qualquer semblante que lhes dê uma identidade. Um desses retratos, um que revelou alguma propriedade ausente nos outros, será o mote da investigação que o pianista empreenderá pelo resto do filme. É esse o mecanismo funcional, certamente o mais importante, de toda a obra de Argento: o protagonista precisa remontar ou desconstruir uma imagem específica relacionada a um assassinato que presenciou - uma imagem que possui algo de ambíguo, algo que não parece resistir à lógica que a cena testemunhada aparentemente obedece - e que acabará o transfigurando de observador passivo a investigador. Mais do que um formalista cuidadoso e um perfeccionista na encenação, Argento é um pensador da forma cinematográfica, alguém que só se interessa pelo plano bem realizado ou pelo corte mais bonito quando por detrás destes existe um raciocínio ou a relação entre uma causa (idéia) e seu efeito (representação cinematográfica). Se seus personagens passam um filme inteiro problematizando e trabalhando em cima de uma determinada imagem que em certo instante provocou a necessidade do questionamento - de uma reação crítica diante do mundo tal qual este se apresenta - é porque Argento tenta ilustrar um ideal, uma filosofia e teoria de cinema na qual acredita perseverantemente: de que uma imagem não basta, de que é necessária sua fragmentação, de que ela por aquilo que aparenta representar não é suficiente para se chegar a uma verdade ou resolução (a identidade de um psicopata, as causas que levaram determinado indivíduo a se transformar em assassino serial etc.); enfim, de que o que particulariza o cinema (a eterna busca de seus personagens) é justamente a montagem, a recriação que teria como princípio fundar ligações e conexões entre os menores detalhes - dos completamente absurdos aos mais imperceptíveis - de uma ou várias imagens. De Ennio Morricone a Goblin, de suspiros a trovões – Ainda nos créditos de Suspiria um narrador de voz suave relata brevemente o ponto de partida do enredo. Sabemos de imediato quem é Susy Banyon e porque resolveu estudar balé na academia de dança Tanz, mas no instante em que se menciona aquilo que o espectador verá imediatamente após os créditos a agressiva música do grupo italiano de rock progressivo Goblin invade o áudio e toma conta do tempo restante das legendas de apresentação. O filme terá seu início propriamente no desembarque em Friburgo, aonde a bailarina americana Susy chega da viagem que realizou de Nova York à cidade alemã. O exagerado trabalho de iluminação nesta seqüência - vermelhos, verdes e azuis extremamente saturados - serve em grande parte como contraste para o branco (da serenidade, do equilíbrio) do vestido de Susy, e é este o tipo de simbolismo desenvolvido por Argento nas cenas seguintes: uma tempestade parece apontar os transtornos e horrores que estão por vir; um passeio de táxi cujo início remonta Edward Hopper se transformará num delírio audiovisual que em alguns segundos passa de Jean Cocteau a Mario Bava; a sombra assustadora que surge e desaparece no repente de um relâmpago sugere uma pessoa empunhando uma foice; e tudo isso ocorre apenas durante o percurso que levará a bailarina à academia de dança. Tão logo o táxi estaciona na frente da Tanz Akademie e Susy, ainda envolvida por um pesadelo de chuvas fortes e trovões amedrontadores, desce do veículo para tentar algum contato. Neste mesmo instante uma outra moça sai de dentro da academia e começa a berrar ao interfone presente no hall de entrada. Por conta de diversos trovões e do forte barulho de chuva Susy não conseguirá escutar aquilo que a garota berra (lembrando bastante o que a trilha do Goblin faz à narração que acompanha os créditos), e quando esta aparece morta mais tarde surge a necessidade de resgatar este algo que não foi ouvido, que não tomará forma antes de Susy acionar o mecanismo da montagem (desconstrução e recriação), novamente primordial no que dá prosseguimento à narrativa e às pesquisas formais que tanto interessam Argento. Pois como em A Conversação de Francis Ford Coppola e posteriormente Um Tiro na Noite de Brian De Palma, em Suspiria é a aliança entre som e imagem que percorrerá a busca de Susy por uma verdade, por um detalhe que tenha passado despercebido no que testemunhou ao chegar à academia e que talvez revele algo referente ao assassinato da moça que viu berrando. Não é coincidência que esta seja a segunda vez que Argento trabalha com o rock agressivo dos Goblin: à trilha sonora é conferido o importantíssimo papel de depurar e realçar elementos cênicos e imagéticos presentes nas memoráveis cenas de assassinato, exemplares únicos do cruzamento de coreografias dignas de filmes musicais com a plasticidade do horror mais exagerado e artificial (novamente a influência de Bava). Se como disse o diretor em entrevista recente as trilhas compostas por Ennio Morricone destacam o pavor e o medo das vítimas, as trilhas de Goblin (para este filme mas também as de Prelúdio Para Matar, Tenebre e Insônia) celebram justamente os assassinos e seus assassinatos contrastando sons estridentes com vozes sussurrantes, construindo uma sensação de descontrole e desespero através de diversas nuances. É a partir desta associação com os Goblin e de mudanças radicais na sua obra que, com Prelúdio Para Matar em 1975 e Suspiria em 1977, Argento passa de um aprendiz esforçado dos thrillers de Mario Bava e Alfred Hitchcock - e do Fritz Lang de Os Mil Olhos de Dr. Mabuse - para a posição de "maestro" de um terror inequivocadamente italiano, esteticamente requintado e renovador do gênero esboçado por, entre outros, Roger Corman e Terence Fisher. As "Três Mães" e todas as mães; óperas e traumas, essências de um cinema – Definitivamente não é coincidência que um dos filmes de Argento se chame Trauma e que sua trama remonte a de Prelúdio Para Matar. Se geralmente é dito que Argento alcançou sua maturidade artística no intervalo entre este filme e Suspiria é em grande parte porque as pesquisas formais rascunhadas nos seus três primeiros trabalhos (O Pássaro das Plumas de Cristal, O Gato de Nove Caudas e Quatro Moscas no Veludo Cinza) são radicalizadas e resultados mais interessantes são alcançados. Mas o que de fato tanto Prelúdio Para Matar quanto Suspiria possuem de relevância em comparação aos trabalhos anteriores é que existe pela primeira vez um real investimento de Argento numa série de temas que posteriormente se transformam em pontos recorrentes do resto de sua obra: a influência nefasta das ações de uma mãe na vida de seu filho, o choque que perseguirá este pelo resto de sua vida e as conseqüências que surgirão futuramente. Esta resposta ao passado toma forma na série de assassinatos que acabarão envolvendo o protagonista. Influência óbvia da ópera italiana, esta tematização do trauma infantil e da relação tempestuosa entre um filho e sua mãe ganha contornos inacreditáveis em Phenomena: Jennifer Corvino - uma jovem americana sensitiva que vai para a Suíça estudar no internato feminino Richard Wagner por conta do relacionamento conturbado que tem com seus pais - investiga uma série de mortes que andam ocorrendo usando da capacidade que possui de se comunicar com insetos. Durante o percurso que o espectador segue com a jovem algumas das mais belas cenas já filmadas por Argento vão se revelando de pouco a pouco, como a perseguição numa floresta ao som de "Flash of the Blade" da banda Iron Maiden e o uso que o cineasta faz das paisagens suíças. Mas é na conclusão que fica clara a intenção do autor em reunir os melhores momentos de Suspiria e Prelúdio Para Matar ao mesmo tempo em que subverte o mito de Édipo e Alfred Hitchcock: Jennifer descobre que o assassino é uma deformada criança psicopata e que sua mãe - a coordenadora do internato - encobriu os atos de seu filho matando várias das colegas de Jennifer. Certamente o mais escandaloso e idiossincrático dos filmes de Argento, Phenomena marca outro momento crucial de sua carreira, reunindo os temas trabalhados em todos filmes anteriores ao mesmo tempo em que renova estética e formalmente sua obra (desta vez, a influência é o expressionismo e o realismo fantástico) e amplia seu interesse em formatos narrativos diferentes do giallo. Nouvelle Vague, Antonioni e ainda a presença da ópera: Argento, cineasta/crítico – Sem dúvida é o Antonioni de Blowup - Depois Daquele Beijo que antecede Argento no tema da busca e reconstrução da imagem, mas é também a influência de Antonioni que se observa na adoração de Argento por composições e cruzamentos entre a arquitetura urbana mais moderna e a geografia européia de outrora: em Suspiria temos o aeroporto de Munique, a praça Königsplatz e a Tanz Akademie; em Prelúdio Para Matar a recriação do bar da pintura Nighthawks (Hopper outra vez) ao lado de gigantescas esculturas numa praça de Turim e a "villa del bambino urlante"; em Tenebre a praça onde o empresário e agente Bulmer é assassinado e uma casa explorada pela grua Louma num inesquecível plano-seqüência; em O Pássaro das Plumas de Cristal a galeria de arte com suas portas de vidro e belos pedaços da geografia romana (praças, avenidas, construções, garagens etc.); em O Gato de Nove Caudas o instituto Terzi, as ruas e avenidas de Roma numa perseguição de carro e um bar instalado na cobertura de um prédio onde Anna Terzi e o jornalista Carlo Giordani conversam; e obviamente os teatros de ópera, presentes em Quatro Moscas no Veludo Cinza, Prelúdio Para Matar, Terror na Ópera, Um Vulto na Escuridão e Insônia. Trata-se de algo que Argento trouxe de inédito, esta necessidade de tirar a câmera dos estúdios, de explorar espaços públicos e de tentar instaurar o terror em ambientes abertos e amplos, de se livrar do império das máquinas pesadas e das dollys para trazer à criação do suspense o nervosismo da câmera de mão. É desta maneira que o cineasta traz uma abordagem despojada e jovem a um gênero que até então só era trabalhado a partir de um modelo classicista perpetuado na literatura e nos filmes, uma modernização que não abandona ou despreza seus precedentes mas os reinventa, e certamente o gosto de Argento pelo emprego de uma iluminação repleta de excessos e sutis significados, assim como a preferência pelos movimentos rebuscados da câmera, não mente: ao mesmo tempo em que se põe na contramão desta tradição é altamente influenciado pela mesma. São nestes aspectos que o jovem cineasta e ex-crítico de cinema do jornal Paese Sera revela a influência dos tempos em que testemunhava em conjunturas bastante próximas a novidade da nouvelle vague e a ascensão de um certo Sergio Leone, cineasta operístico por excelência e o primeiro a perceber seu potencial quando em 1968 o convida para trabalhar, junto com Bernardo Bertolucci, no roteiro de Era Uma Vez no Oeste. O gosto pelo espetáculo e a forte influência de um período em que a crítica cinematográfica defendia uma série de renovações formais e ideológicas no que era produzido então: Argento é este paradoxo da união de ideais tão distintos. E mesmo com todos os horrores uma grande fé resiste; ao mundo o direito de ser mundo – Até aqui já se discutiu sobre estética, formatos narrativos, Argento como um pensador da forma, seu estilo, suas predileções temáticas e como todas estas características formam um cinema ou uma idéia de cinema. Mas se chegamos a apenas uma conclusão, a de que Argento possui um olhar peculiar e pensa muito bem os elementos que constroem esse olhar, então de nada serviu tudo o que já emulamos até agora se não é feita uma pergunta conseguinte: e como este cinema se relaciona com o mundo, como diante deste o autor posiciona sua câmera? Apesar dos epílogos de A Mansão do Inferno, Tenebre e Síndrome Mortal possuírem um certo pessimismo, o que permanece em outros filmes é a tentativa - ainda que esta venha carregada de pequenas ambigüidades -, a vontade de restaurar o credo de que há beleza no mundo, que existe algo a se esperar de positivo e que as coisas, boas ou más, acabam seguindo seu caminho. Mesmo que existam piscinas de corpos putrefatos (Phenomena) e crianças que cravam agulhas em lagartixas (Prelúdio Para Matar) existe também uma praça em Turim, borboletas, a vastidão das paisagens suíças, a natureza, um amigo bêbado, a beleza de uma estátua, os animais, conversas noturnas, uma chuva que encarde e outra que purifica, corridas de táxi, a arquitetura italiana, os teatros de ópera; existe enfim o mundo, esta partícula imutável que permanece mesmo durante o trânsito dos maiores males. De Brancas-de-Neve (Susy em Suspiria, Jennifer em Phenomena e Betty em Terror na Ópera) a homens da arte (Sam Dalmas em O Pássaro das Plumas de Cristal, o baterista Roberto Tobias em Quatro Moscas no Veludo Cinza, Marcus Daly em Prelúdio Para Matar, o escritor Peter Neal em Tenebre e a seu modo o inspetor Moretti em Insônia), existem pormenores nos personagens de Argento - o controle e a loucura, uma série de virtudes mas também de problemas - que justificam uma valorização do humano, e é justamente na nota de rodapé que Argento mostra a que veio: o que ganha eco ao final de O Gato de Nove Caudas não são as lamúrias do assassino mas a voz da sobrinha do ex-jornalista Franco Arnò berrando "Cookie, Cookie!", tornando claro que após um período de violência a ordem se restitui; o que é refletido na poça de sangue em Prelúdio Para Matar não são os ressentimentos da ex-atriz Martha, autora dos assassinatos, mas a expressão deprimida - pela morte de seu amigo Carlo, por testemunhar o assassinato de inocentes, por ter acabado de perder seu labor ao levar uma machadada no braço e por ter precisado matar o assassino a quem buscava - de um Marcus que chega ao fim de uma jornada violenta e transtornada apenas para perceber que o mundo à sua volta ainda é o mesmo e ainda assim não será mais o mesmo; quem sai da Tanz Akademie ao final de Suspiria não são os devotos de Helena Marcus mas uma Susy transformada, pronta para encarar novamente o mundo após a série de incidentes ocorridos desde sua chegada à Alemanha; quem consegue firmar um reencontro com a natureza ao final de Phenomena não é Frau Bruckner nem seu filho psicopata mas é a mesma Jennifer que no início do filme não deixou que matassem uma abelha e que ao final se reencontra com a chimpanzé Inga, o único resquício de sua amizade com o falecido professor John McGregor; e é este mesmo reencontro com a natureza e com o mundo que figurará de maneira definitiva em Terror na Ópera, no momento em que a jovem cantora Betty se joga no gramado e diz que não se interessa mais pelas coisas que não sejam deste mundo, que só lhe interessa as árvores, os animais, a grama, uma borboleta ou ajudar uma lagartixa presa sob um graveto que talvez represente um acerto de contas com Prelúdio Para Matar e com a fúria, com a angústia presente em outros filmes. Punição e redenção, pecado e renovação; Argento - italiano e católico, filho da ópera, de Luchino Visconti e Sergio Leone mas também de Orson Welles, Fritz Lang e Alfred Hitchcock - é dos poucos cineastas capazes de mostrarem que não é necessária uma distinção entre crença no mundo e crença no cinema (Brian De Palma é outro que vem em mente), que fazer cinema pode ser uma maneira de construir uma visão de mundo. É a eterna busca pela forma que seja o seu próprio conteúdo que talvez melhor ilustre o que nos interessa em Dario Argento.

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