quarta-feira, 3 de março de 2010

Aparências


Sexta-feira, 7 de julho de 2009.
Foi em meados de junho, época chuvosa e fria que o homenzinho tornou-se real. Passeava todos os dias no caminho de folhas secas e terra úmida rumo a estrada principal. Nunca tomei conhecimento do lugar de onde ele veio. Também nunca travei conversa com tal criatura. O fato é que estava sempre apressado, buscando alguma coisa, um errante que esqueceu o caminho que percorreu no dia anterior e o refaz estúpida e sistematicamente. Já chovia menos e as folhas caídas no caminho do homenzinho estalavam mais a sua passagem. Não que fosse necessário qualquer tipo de aviso. Todos os dias bastava o relógio soar quatro da tarde, lá estava ele. Não sei se notava que eu o espiava pela janela. Se notava, fingia que não. Eu gostava disso. O homenzinho me agradava. As pernas curtas, a careca sempre reluzente e imaculada, e os olhos... nunca me foi possível ver-lhe os olhos, coisa que me agradaria muito. Imagino-os de cor estranha, não devem ser humanos. As sobrancelhas raspadas cuidadosamente ao som de Pink Floyd. Sangue pingando sobre a espuma na pia. Um ser sem pai, nem mãe, nem passado ou memória. As folhas apodreceram no caminho do meu caro homenzinho. Eu ainda me sentava na janela e observava a sua passagem como uma criança que não se cansa de ver todos os dias o mesmo desenho, ouvir a mesma música. A emoção de saber o que vai acontecer, esse falso poder vidente. As árvores ganharam nova folhagem, estranhamente coloridas de amarelo dessa vez. Talvez seja essa a cor dos olhos da minha bela criaturinha. Talvez seja por isso que há tempos eu olhava pela janela e via sempre essa tonalidade na paisagem. Foi no dia em que o homenzinho não apareceu na hora de sempre que meu encanto se quebrou. conferi o horário diversas vezes. Quatro e meia, cinco horas. Não, dessa vez ele não viera.Acabei por pegar no sono ali mesmo, no parapeito da janela. Já era noite alta quando o barulho de galhos estalando me despertou. Lá vinha o homenzinho, apressado como sempre. Pode ter sido apenas ilusão causada pelo sono, mas dessa vez tive a nítida impressão de que ele olhou para mim, os olhos brilhando felinamente na noite escura e sem estrelas. Não resisti e desci célere as escadas, me embrenhando no caminho de árvores. Nunca cheguei a alcançar o homenzinho e não sei bem há quanto tempo o persigo. Gostaria de ter trazido um relógio. Assim saberia a que horas passo em frente aquela casa na beira do lago. Todos os dias.

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